SUBVERSÃO E ABJEÇÃO:
REPRESENTAÇÕES DE SEXUALIDADES DIVERGENTES NO GÓTICO QUEER
Andrio J. R. dos Santos
Doutor em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), RS. andriosantoscontato@hotmail.com
William_Bouguereau - pintura "Dante_and_Virgile" , 1850
SUBVERSÃO E ABJEÇÃO: REPRESENTAÇÕES DE SEXUALIDADES DIVERGENTES NO GÓTICO QUEER [1]
Andrio J. R. dos Santos [2]
RESUMO
O gótico queer, um dos mais recentes desdobramentos da literatura gótica, se apresenta como um tipo de ficção em que corpo, gênero e sexualidade ocupam lugar central. Neste trabalho, pretendo analisar a representação de sexualidades queer em obras de gótico queer, fundamentando-me na teoria do abjeto, assim como em outras autoras que trabalham com ficção gótica e estudos queer, como Judith Butler (1990), William Hughes e Andrew L. Smith (2009) e Paulina Palmer (2016). Minha análise consiste em traçar um panorama crítico, relendo obras góticas como The Monk (1796), de Matthew Gregory Lewis, e The Fall of the House of Usher (1839), de Edgar Allan Poe, culminando em obras contemporâneas, como o romance The Lazarus Heart (1998), do autor trans Poppy Z. Brite. A partir disso, é possível considerar que, nas obras supracitadas, o desejo queer se articula às fantasmagorias de cunho sobrenatural ou psicológico, assumindo um caráter limiar que denuncia a fragmentação do sujeito queer frente à sociedade hegemônica. Além disso, a representação de sexualidades queer também apresenta potencialidades subversivas, ao passo que o discurso hegemônico impõe sobre elas o estigma da abjeção.
Palavras-chave: Gótico queer, Estudos de gênero, Estudos do gótico.
INTRODUÇÃO
O gótico queer apresenta-se como um desdobramento da ficção gótica em que questões relativas a identidades e sexualidades queer ocupam papel central na narrativa. Esse tipo de ficção emergiu na década de 1990 em meio aos estudos feministas, cujas provocações e críticas de interesse teórico e político impulsionaram uma revisão de textos góticos, examinando, por exemplo, o caráter homoafetivo em obras fundadoras, como The Monk (1796), de Matthew Gregory Lewis, ou de expressões posteriores, como em The Picture of Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde. A sexualidade, assim como suas múltiplas representações e sua relação com aquilo que é tornado abjeto pela sociedade hegemônica, seria então um dos principais temas do gótico queer e, como Micheal Warner (2004) comenta, um dos principais objetos, se não o principal, dos estudos queer. Como a sexualidade está quase que incondicionalmente relacionada a questões sobre corpo e gênero, o gótico queer — ou uma abordagem queer do gótico — levaria em conta essas três questões.
Neste ensaio, pretendo tecer um panorama teórico-crítico sobre gótico queer. Em um primeiro momento, tendo a teoria de gênero e os estudos queer como aporte teórico, discuto questões relativas às características do tipo de ficção compreendida como gótico queer. Trabalho sobretudo a partir da teoria do abjeto inaugurada por Julia Kisteva (1985), uma vez que essa noção nos auxilia a discutir como certos corpos, desejos e identidades dissidentes ocupam uma posição dual nos limites do discurso hegemônico, sendo ao mesmo tempo desejadas e temidas. Em um segundo momento, traço um panorama crítico de obras góticas, partindo de textos do gótico nascente e culminando em obras contemporâneas, comentando sobre o caráter queer dessas obras e sobre a representação de sexualidades dissidentes.
Este ensaio possibilita que se realize uma revisão de literatura sobre os estudos do gótico, tendo como foco o gótico queer, revisitando e relendo obras exponenciais no intuito de discutir questões como autoria, representação de identidades e sexualidades divergentes, focando em suas potencialidades subversivas assim como no frequente estado de abjeção imposto a tais identidades. Para dar conta desse problema de pesquisa, trabalho a partir das concepções teóricas e obras que norteiam a teoria de gênero e os estudos queer, como Julia Kristeva (1985), Eve Sedgwick (1985) e Judith Butler (1990); sobre ficção gótica, como Fred Botting (1995) e Glennis Byron e David Punter (2004); e sobre gótico queer, como George Haggerty (2006), William Hughes e Andrew L. Smith (2009) e Paulina Palmer (2016).
A EMERGÊNCIA DO GÓTICO QUEER
Como um desdobramento recente da ficção gótica, o gótico queer emergiu ao final da década de 1980 e ganhou consistência durante os anos 1990, potencializado em grande parte devido ao desenvolvimento dos estudos feministas (HUGHES, 2013). Estudos expressivos relativos a corpo, gênero, sexualidade e identidade, como as obras de Eve Sedgwick (1985) e Judith Butler (1990), ofereceram um base teórica e crítica para a ascendência desse tipo de ficção, uma vez que os estudos feministas, suas provocações e críticas de cunho político e teórico, geraram um interesse pelo aspecto político da sexualidade, o que impulsionou uma revisão crítica de diversos textos góticos, tanto de expressões iniciais da tradição, como no caso das obras de Matthew Gregory Lewis, quanto por obras modernas. George Haggerty (2006) defende que, em certa instância, a ficção gótica antecipa determinadas discussões a respeito de sexualidade no século XIX, questionando-se se o gótico nascente não se provaria, de fato, como um tipo de narrativa proto-queer. Em Queer Gothic, Haggerty comenta que
[…] the cult of gothic fiction reached its apex at the very moment when gender and sexuality were beginning to be codified for modern culture. In fact, gothic fiction offered a testing ground for many unauthorized genders and sexualities […]. In this sense it offers a historical model of queer theory and politics: transgressive, sexually coded, and resistant to dominant ideology (2006, p. 2).
Eve Sedgwick, que se dedicou ao estudo das relações e dinâmicas homossociais, defende que a apreensão de qualquer aspecto da sociedade ocidental demanda uma compreensão crítica das relações e conceitos relativos à identidade de gênero, corpo e sexualidade. A produção intelectual da autora, sobretudo no tocante ao reconhecimento da pertinência do gênero como veículo de representação de identidades queer, assim como suas leituras de Henry James e Charles Dickens, ofereceu particular aporte teórico à aproximação dos estudos do gótico e dos estudos queer. Em Between men (1985), a autora dedica um capítulo ao gótico e ressalta que
[…] the Gothic was the first novelistic form in England to have close, relatively visible links to male homosexuality, at a time when styles of homosexuality, and even its visibility and distinctness, were markers of division and tension between classes as much as between genders (SEDGWICK, 2015, p. 91).
A ficção gótica apresenta certa obsessão por temas limiares frequentemente tornados abjetos pelo discurso hegemônico, sobretudo no que diz respeito a temas relacionados a sexualidades divergentes. A partir disso, desenvolve-se a noção de gótico queer, uma vertente da ficção gótica caracterizada pela centralidade que representações de sexualidades divergentes ocupam na narrativa. Essa questão se mostra alinhada ao questionamento traçado por Michael Warner na introdução de Fear of a Queer Planet (2004), uma vez que o autor se questiona se a sexualidade poderia ser considerada o principal objeto dos estudos queer assim como gênero se tornara o principal objeto do feminismo.
Paulina Palmer (2016) comenta que o gótico sempre possuiu um tipo de caráter queer, partindo de um escopo semelhante ao de Sedgwick. Em Queering the Gothic (2009), Hughes e Smith traçam uma breve concepção acerca do tipo de ficção compreendida como gótico queer. Para os autores, queer se refere a uma qualidade presente na narrativa gótica:
[…] queerness [...] is a quality which may be said to inflect a sense of difference not confined simply to sexual behavior but which may equally inform a systematic stylistic deviance from perceived norms in personal style or artistic preference (HUGHES; SMITH, 2009, p. 5).
Para Hughes e Smith, queer se refere à representação de um indivíduo à margem ou excluído dos discursos hegemônicos de poder e de identidade. Além disso, o termo também implicaria um desvio estilístico, o que poderia ser posto em paralelo à teoria de gênero como performance proposta por Judith Butler em Problemas de Gênero (2019), obra publicada em 1990. No entanto, por vezes, os autores parecem atribuir um sentido geral demais ao termo queer, no intuito de garantir abordagens amplas e distintas aos estudos do gótico. Claro que, nessa perspectiva, corre-se o risco de afastar a noção de queer de seu escopo fundamental relativo não só a sexualidades divergentes, como também às questões sobre corpo, gênero e identidade de gênero. Ainda assim, o estudo dos autores se revela um esforço consistente de aproximação dos estudos do gótico e dos estudos queer, garantindo a ambas as áreas certo alcance e autonomia.
Seria interessante notar que, assim como Fincher (2007), Hughes menciona que o gótico poderia ser compreendido como um gênero narrativo caracterizado por um elemento formalmente queer, pois “it is balanced uneasily between a frequently superficial adherence to the literary orthodoxies of plot and characterization, and the almost invariably unpalatable nature of its subject matter” (2013, p. 207). Para o autor, essa característica formal, esse desvio das convenções narrativas, assentar-se-ia à predileção do gótico por temas não palatáveis e limiares, tais como o tabu do incesto ou a obsessão em perverter ícones ou espaços religiosos e/ou considerados sagrados.
Não pretendo adotar uma perspectiva tão abrangente, tendo o cuidado de manter o queer em seu escopo fundamental, relativo a corpos, sexualidades, gêneros e complicações do desejo, especialmente quando consideramos certos contextos históricos. Paulina Palmer (2016) comenta que a ficção gótica jamais se reportou exclusivamente a questões homossexuais e, por isso, o seu caráter queer teria mais a ver com a maneira com que o gótico representa, oculta ou simboliza identidades e orientações sexuais diante de uma cultura heteronormativa que se estrutura sobre a oposição e a exclusão de identidades divergentes. A autora também ressalta que o gótico queer, como abordagem temática, estrutural e analítica, diria respeito àqueles textos em que sexualidade e identidade de gênero ocupam lugares centrais, da mesma maneira que o processo de abjeção também ocupa — uma perspectiva que julgo adequada ao presente ensaio. O conceito de abjeção, cunhado por Julia Kristeva em Powers of Horror (1980), oferece aporte a abordagens queer do gótico; a obra da autora aparece como referência em textos fundamentais aos estudos do gótico, como Gothic (1996), de Fred Botting, e no primeiro volume de The Literature of Terror (1996), de David Punter.
A teoria de Kristeva contraria as noções da psicanálise convencional (contemporâneas à publicação da obra), que compreende que a construção da identidade do sujeito estaria fundamentada em uma relação opositiva e constitutiva entre sujeito e objeto e em uma série de pressuposições concernentes a padrões simbólicos nascentes, por vezes tidos como pré-discursivos — são exemplos disso a debatida oposição entre edipiano e pré-edipiano, a relação opositiva entre o sancionado e o tabu e a suposição de que o desejo é distinto do objeto de desejo. No entanto, para Kristeva, sujeito e objeto têm traços identitários inerentes, em si mesmos e a respeito de si mesmos. Essa reconfiguração das coisas ocasionou uma mudança na maneira como pensamos as fronteiras que demarcam as relações entre o eu e o outro. O conceito de abjeção questiona a garantia de integridade do eu da identidade, ao passo que a própria noção de abjeção, daquilo que é excluído, rejeitado, recusado, torna um tanto brumosa e porosa as fronteiras desse eu; em suma, a teoria de Kristeva propõe que o outro — e de fato que qualquer instância desse outro que é tabu, que é paradoxalmente desejado e repudiado — talvez já faça parte do eu. Assim, o eu possuiria qualidades definidoras, por vezes ocultas, capazes de, ora ou outra, irromper à superfície e denunciar a falsidade da aparente integridade do eu. Esse processo diria respeito àquilo que é simbolizado ou representado como abjeto. Além disso, Kristeva compreende que o corpo, suas excreções e secreções, denunciam as qualidades materiais do que é tornado abjeto, uma vez que o corpo estaria constantemente engajado em processos de abjeção, que compreenderiam a rejeição de dadas substâncias, algo que em si já acusaria a ilusão de inteireza e constância atribuídas ao corpo e ao eu.
Não busco negociar a relação da ficção gótica com a sexualidade, e sim me ater a obras em que essa característica se mostre essencial e determinante. Acredito que seja mais pertinente questionar ou discutir de que maneira a sexualidade, enquanto objeto de analise, seja representada — ou ocultada — no texto, principalmente em relação a outros temas ou questões que não estão, ou não aparentam estar, diretamente relacionados à sexualidade. Trata-se de uma abordagem semelhante à de Artel Haefele-Thomas (2012) ao investigar as intersecções entre o gótico e as teorias sociais, culturais, de gênero e queer, considerando representações da sexualidade no gótico vitoriano. A partir disso, traço um panorama da ficção gótica, analisando questões relativas à representação de sexualidades divergentes sob a ótica da teoria do abjeto. Nessa lógica, o queer se torna, de certa maneira, um tipo de força insurgente calcada de ação de rever, reler, repensar e recontextualizar. Pois, como Warner (2004) comenta, não se trata de encontrar o queer na teoria ou na crítica, mas de tornar queer a crítica e a teoria.
TORNANDO O GÓTICO QUEER: UM PANORAMA
“I am the love that dare not speak its name”, afirma um dos belos jovens no último verso do poema "Two Loves" (1892), de lorde Alfred Douglas, amante de Oscar Wilde. Esse verso, de certa forma, serve como mote da análise proposta neste ensaio. “O amor que não ousa dizer o próprio nome” foi usado como evidência contra Wilde no julgamento sobre The Picture of Dorian Gray (1890). Michael Warner (2004) comenta que o termo “sodomia” já foi visto como um pecado inominado, como uma perversão sem nome, exatamente o que as acusações e o julgamento de Wilde exemplificam. Warner parte de textos clínicos e de relatos para discutir a obscuridade relacionada à “sodomia” e, nessa lógica, ao amor homossexual. Essa questão se relaciona a noção de abjeto de Kristeva, uma vez que a sociedade necessita de relações homossociais, mas também precisa tornar abjetos certos corpos, sujeitos e sexualidades a fim de garantir a manutenção do status quo.
No gótico queer, questões relativas a corpo, gênero e sexualidade mostram-se sempre em tensão. Representações de corpos divergentes, perfomances de gênero e identidade se revelam como objetos daquilo que o discurso hegemônico ao mesmo tempo deseja e transmuta em algo abjeto. É essa instância de perversão inaudita e inominada que eu procuro apresentar e discutir no presente ensaio. Três romances influentes do gótico nascente servem de exemplo a tais questões.
The Castle of Otranto (1764), de Orace Walpole, é considerando o romance que inaugura a ficção gótica. Na obra, a representação de gêneros está fundamentada em uma noção hiperbólica, uma das características que alguns autores, como Hogle (2002) e Punter e Byron (2004), identificam na ficção gótica. A masculinidade exacerbada de Manfred pode ser lida como produto da homofobia, que por sua vez se mostra dependente tanto da presença da misoginia quanto de ansiedades relativas a gênero. O romance também associa o desejo proibido, ainda que não se trate necessariamente de um desejo queer, ao sobrenatural, investindo-o de dubiedade. Seria essa dubiedade, assomada ao caráter formal e tematicamente desviante do romance que possibilitaria encontrar na obra algo de queer. Além disso, vale considerar a provável homossexualidade de Walpole, por vezes mencionado como “efeminado”, embora não haja consenso sobre o assunto. No entanto, a primazia de potências masculinas, ao lado a panóplia de segredos, fantasmas e pecados escondidos “no armário” — por vezes, literalmente — poderia nos sugerir o retorno de um desejo suprimido ou a sublimação de um desejo que seria, em última instância, queer.
Vathek (1786), de William Beckford, enfatiza a paranoia que relaciona o “efeminado” ao desviante e, por consequência, ao monstruoso, tornando-o abjeto a partir desse processo. No romance, o monstruoso e o demoníaco assumem o verniz decadente e podem ser lidos como queer, uma vez que são produzidos por um discurso condenatório e recorrente que se reporta ao “pecado sem nome”, a saber, a sodomia, e que transmuta o desejo homoafetivo em algo abjeto. O corpo tem papel central na obra, principalmente em relação ao personagem Vathek, assumindo por vezes possibilidades de representar sentidos conflitantes com as identidades de gênero hegemonicamente atribuídas. No que diz respeito à autoria, Beckford era um dândi amente das artes e notoriamente queer, ainda que não exista concordância quanto a se ele era gay ou bissexual, uma vez que Beckford manteve relações significativas tanto com homens quanto com mulheres. Em 1784, algumas de suas cartas a William Courtenay, futuro 9º Earl de Devon, foram interceptadas e divulgadas em jornais. Devido ao escândalo, Beckford deixou a Inglaterra.
The Monk (1796), de Matthew Gregory Lewis, está permeado por temas e elementos queer. As trocas de olhares entre os personagens dão o termômetro da tensão homoerótica ao mesmo tempo em que o uso de reticências oculta essa tensão, uma vez que as reticências se reportam, no texto, àquilo que foi suprimido ou não dito e, assim, a expressão de uma sexualidade divergente seria ocultada. Além disso, no capítulo 11 de The Monk, Agnes de Medina é posta numa situação literalmente abjeta. Expulsa do convento, ou seja, do corpo da igreja Católica, devido a suas experiências sexuais e consequente gravidez, ele é jogada num calabouço, na companhia de uma cabeça pútrida coroada por vermes, assim como do corpo decomposto de sua prole ilegítima. Como suas experiências são julgadas perigosas à integridade moral de seu contexto social, ela é confinada no intuito de proteger aqueles que podem vir a ser postos em perigo moral e espiritual devido às suas transgressões. Ou seja, ela se torna queer ao seu contexto eclesiástico devido aos seus “desvios” sexuais, que possuem forte base política. No entanto, é interessante notar que Agnes não é apenas concebida como uma criatura pecadora e impura, ela é abjeta da própria vida, uma vez que foi enclausurada com os mortos. De certa forma, ela passa a ser uma excreção morta do corpo eclesiástico. Já a persona de Lewis apresenta uma ambiguidade semelhante a de Walpole; embora pudéssemos mencionar que havia algo de queer na figura do autor, no que se refere à sexualidade, dificilmente seríamos capazes de ir além da especulação.
Essas três obras do gótico nascente estão permeadas das tensões que frequentemente marcam as dinâmicas homoafetivas nesse tipo de ficção. É claro que a lista é longa e outras obras poderiam ser mencionadas. Por exemplo, Sedgewick examina as relações homoafetivas em The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner (1824), de James Hogg, demonstrando como a relação entre as personagens está permeada por uma tensão produzida pelo conflito entre aversão e desejo homoerótico. Tendo isso por base, a autora destaca que “[t]he Gothic novel chrystallized for English audiences the terms of a dialectic between homosexuality and homophobia, in which homophobia appeared thematically in paranoid plots” (SEDGEWICK, ANO, p. 92).
Gostaria agora de chamar atenção para uma questão particular referente à The Fall of the House of Usher (1839), de Edgar Allan Poe. No conto, somos apresentados a dois irmãos gêmeos, Roderick e Madeline, que vivem no solar decadente da família. A história é contada em primeira pessoa por um narrador inominado, um recurso que Poe utiliza para potencializar a dubiedade do texto. Ambos os irmãos são acometidos por enfermidades misteriosas, talvez pelo mal do século, considerando o caráter decadentista de certos textos de Poe. Roderick parece assaltado pela sinestesia, uma condição que produz entrecruzamentos, trocas e transferências de sentido no aparelho sensorial e, no texto de Poe, também na percepção estética da personagem. Madeline, por sua vez, sofre de algum malefício desconhecido. O narrador inominado menciona que ela tem hábitos estranhos, é reclusa, tem aparência mórbida e, em dado momento, ele afirma que Madeline é idêntica de Roderick, o que não apenas sugere a caracterização andrógina das personagens, como também a indefinição de gênero produzida por tal caracterização. Na crítica, frequentemente menciona-se o incesto como característica desviante ou empreende-se leituras sobre ansiedades sociais relativas à semelhança entre Roderick e Madeline. Todavia, ao que parece, foi fácil perder um detalhe a respeito da representação dos irmãos: eles são idênticos. Lembremos que gêmeos só podem ser idênticos se forem monozigóticos, o que significa que eles teriam o mesmo sexo atribuído. Ou seja, Madeline seria uma mulher trans, de longe a face mais interessante do texto de Poe em relação ao gótico queer — voltarei a essa questão mais tarde.
Talvez seja indispensável comentar sobre Oscar Wilde. Ao discutir a historicidade carregada pelo termo queer, Max Fincher põe Wilde em lugar de destaque, quase como uma figura divisora de águas: “[t]he risk of the charge of anachronism in using queer is a risk anyone must confront who reads fiction queerly before the most widely recognized queer, Oscar Wilde” (FINCHER, 2007, p. 8). Hoje em dia, talvez a maior porção da fama de Wilde se dê justamente por isso: a contínua e extraordinária ressonância simbólica de sua personalidade, de sua vida e de seu trágico destino. The Picture of Dorian Gray (1890) é considerado uma obra prima do gótico (PUNTER; BYRON, 2004) e pode ser lido como queer. Wilde era parente distante de Charles Robert Maturin, autor de Melmoth the Wanderer (1820), um texto cuja aura decadente ressoa em Dorian Gray. Wilde chegou a adotar o nome de Melmoth em seu exílio em Paris, depois de ser liberado da prisão. O jovem Dorian Gray vendeu a alma por juventude através de um pacto mefistofélico e Lorde Henry parece traçar, em um de seus famosos aforismos, uma profecia e sentença a respeito da vida de Dorian: “[t]he only way to get rid of a temptation is to yield to it. Resist it, and your soul grows sick with longing for the things it has forbidden to itself, with desire for what its monstrous laws have made monstrous and unlawful” (WILDE, 2011, p. 74-75). Depois disso, Dorian passa a cometer todo tipo de pecado. Mas qual seria o pecado? Qual seria a tentação? Do que se tratam essas coisas proibidas tornadas monstruosas? Isso jamais nos é narrado, os pecados de Dorian não são mencionados, embora ele seja moral e socialmente julgado por eles. Vale lembrar, no entanto, que a sodomia era “pecado inominado”, o “crime inenarrável” e, nessa lógica, “o amor que não ousa dizer o próprio nome” mencionado no verso final do poema de Alfred Douglas, amante de Wilde. Esse argumento e outras passagens de Dorian Gray foram usados contra Wilde no julgamento que o condenou a dois anos de prisão.
A partir do século XX, particularmente a partir dos anos 1980, o gótico queer começa a ganhar consistência. Entre o abundante número de obras do tipo, é possível mencionar The Folding Star (1994), de Alan Hollinghurst, romance que recebeu o James Tait Black Memorial Prize, um dos mais tradicionais prêmios literários da Grã-Bretanha. Embora Hollinghurst não seja especificamente um autor do gótico, esse romance em particular pode ser lido sob o escopo do gótico queer (PALMER, 2016). A obra se ocupa de narrar a relação homoafetiva entre Edward Manners e seu aluno, Luc, explorando principalmente a relação entre aquilo que é sancionado e aquilo que é tabu. No romance, o desejo queer aparece associado ao retorno das fantasmagorias do desejo, algo que metaforicamente assombra o desenvolvimento temático da obra e que denuncia o tipo de pressão e força que os discursos hegemônicos exercem sobre as personagens.
O autor trans Poppy Z. Brite escreveu The Lazarus Heart (1998), um romance ambientado no universo multimidiático do comic The Crow (1989), de James O’Barr. Brite apresenta os irmãos gêmeos Benny, que é gay, e Lucrece, que é trans, em meio a um mundo repleto de referências e reinterpretação da obra de Edgar Allan Poe. O romance subverte a lógica do universo ficcional de The Crow, cujo tropo central se estabelece como um homem que volta à vida para vigar a morte da amante assassinada. No romance, é Jared quem volta à vida para se vingar da morte de Benny, seu namorado, o que em si já torna o romance queer. Aqui, eu gostaria de retomar The Fall of the House of Usher (1839), assim como a possibilidade de Madeline ser uma mulher trans. Brite parece tecer um interessante paralelo entre Roderick e Madeline e Benny e Lucrece. Na conclusão do romance, Brite retira o protagonismo das mãos de Jared, alocando Lucrece no centro da trama. Ela foi morta e literalmente destruída, tendo o corpo desmembrado por um assassino em série. No entanto, ela retorna dos mortos em busca de vingança. O corpo de Lucrece fora retratado como algo desprezado, temido e, em certas instâncias, também vulnerável em relação à hegemonia. Mas Brite reestabelece o corpo da personagem em novo significado. Lucrece torna-se uma sujeita dotada e reconhecida por seus próprios desejos. Além disso, o renascimento de Lucrece opera como uma naturalização, uma vez que Lucrece volta dos mortos em seu estado “original”, e seu estado “original” é o de uma mulher trans. Em certa medida, a Lucrece ressuscitada também é Madeline ressuscitada e, dessa maneira, Brite redefine o corpo hegemonicamente taxado de horrendo como um corpo dotado de energia e vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste ensaio, meu objetivo foi perpassar obras exponenciais marcadas pela centralidade de questões relativas à sexualidade, o que caracteriza o gótico queer. É evidente que precisei selecionar títulos e que algumas obras acabaram ficando fora do presente panorama. No fundo, um trabalho crítico é também um trabalho de delimitação do escopo. No entanto, as obras selecionadas permitiram a realização de uma interessante revisão de literatura a respeito dos estudos do gótico, tendo como foco o gótico queer, além de resgatar a questão da autoria, por vezes deixada de lado nos estudos literários.
É claro que existem certas dificuldades em discutir o caráter queer do gótico, problemas que autores como Hughes e Smith (2009) reconhecem e dos quais não se esquivam. Ao mesmo tempo em que o queer designa diferença, o termo nem sempre indica distinção em relação ao espectro do desejo e/ou práticas sexuais, por exemplo. Queer representa também uma noção de transgressão e, por isso, performar uma identidade queer compreende um esforço no intuito de romper com tensões binárias e construções sociais, como as próprias noções hegemônicas que regulam identidades de gênero — como as representações de corpos e sexualidades que hegemonicamente determinam uma ideia de “homem” e “mulher”.
Reexaminar questões sobre autoria, representação de personagens e atualizações de tropos narrativos do gótico nos permite compreender que corpos e sexualidades dissidentes são ao mesmo tempo desejados e tornados abjetos, a partir de uma relação simbólica que opera por transferência. Nessa medida, o desejo queer se articula às fantasmagorias de cunho sobrenatural ou psicológico, assumindo um caráter limiar que denuncia a fragmentação do sujeito queer frente à sociedade hegemônica. Por outro lado, a representação de sexualidades queer também apresenta potencialidades subversivas, pois por vezes permite que um sujeito proscrito performe uma identidade dissidente à margem dos discursos hegemônicos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WARNER, Michael (Ed.). Fear of a Queer Planet – Queer Politics and Social Theory (1993). University of Minnesota Press: Minneapolis, 2004.
[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
[2] Doutor em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS. Vinculado ao estágio pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da UFSM, bolsa PNPD/CAPES, sob supervisão do prof. Dr. Anselmo Peres Alós, andriosantoscontato@hotmail.com.
"Satan in his Original Glory" (1805). O Satã do poeta/artista plástico William Blake, que ilustrou também "O Paraíso Perdido" de John Milton (abaixo)
"Satan Arousing the Rebel Angels" William Blake, 1808
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