ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA GÓTICA:
“O Gótico tem sido e permanece necessário à cultura ocidental moderna, porque ele nos permite, no fantasmagórico de uma ficcionalidade descaradamente falsa, confrontar as raízes de nossos seres em contraditórias multiplicidades (da vida se transformando em morte aos gêneros se confundindo até o medo se transformando em prazer e muito mais) e a definir nossos seres em oposição a essas assombrosas contradições, ao mesmo tempo que nos sentimos atraídos por elas, tudo isso em um tipo de atividade cultural que, enquanto o tempo passa, pode continuar inventivamente a mudar seus fantasmas de mentira para que abordem anseios e medos culturais e psicológicos mutáveis”. (Jerrold e. Hogle)
As caraterísticas principais dessa literatura estabeleceram o sentido da palavra “Gótico” nos últimos 200 anos. Toda literatura posterior que foi influenciada segue esse sentido da palavra Gótico, bem como o cinema no século XX, desde seu surgimento. Posteriormente a subcultura gótica se apropriou desse repertório todo, resignificando-o.
Algumas características principais da literatura gótica são:
- CARÁTER PROMETEICO: como no mito de Prometeu, algum personagem tende a desafiar os deuses, mesmo que seja para melhorar o mundo, sendo depois eternamente punido por isso. Por consequência, o mito de Lúcifer acaba sendo assimilado a essa ideia no século XVIII, especialmente pela obra Paraíso Perdido de Milton. Não por acaso, Mary Shelley chama seu Frankenstein de “Moderno Prometeu”.
Por isso, tantos “anjos caídos” e “anjos negros” na estética gótica. O Mito de Prometeu tem várias versões. Em uma das mais conhecidas o titã Prometeu rouba o fogo dos deuses (a cultura) para trazer aos humanos e melhorar nossas vidas. Ele é descoberto pelos deuses e recebe uma punição exemplar e eterna: ser amarrado a uma rocha e ter seu fígado comido todo dia por uma águia, sendo que todo dia seu fígado se regenera para que o suplício possa se repetir…
Prometeu se torna, assim, um modelo daquele que ousa desafiar a ordem estabelecida (da sociedade, da religião, dos deuses, do universo etc) para realizar uma melhoria humana ou se colocar acima dos deuses, incorrendo em algum erro nesse processo que causa mais danos que bem (muitas vezes enlouquecendo no processo) e sendo exemplarmente punido no final, muitas vezes, com uma punição eterna.
- HEROI X MUNDO/ EU X EU: Ao contrário do Romantismo tradicional, o conflito não é entre um herói bom e um mundo mau que atrapalha a realização do bem e do amor. O conflito na estética Gótica é interno, pois o mal e a loucura ameaçam o protagonista a partir de dentro de si. Posteriormente esse modelo vai inspirar o será chamado de herói Byroniano.
O “herói” (se o podemos chamar assim…) gótico tem uma moral dúbia: seu conflito entre bem e mal é interior, não exterior. Já o herói romântico é (ou se vê) uma alma pura e boa, e o conflito acontece com um mundo mau ou decadente, que o impede de realizar sua perfeição e bondade (geralmente através do amor). Podemos perceber que o que passa a ser chamado de herói Byroniano décadas depois não é mais que uma versão romântica desse personagem gótico seminal.
É assim com Manfred, Vathek, Monge, o Judeu errante, Frankenstein e todos os Vampiros e anjos caídos que possamos imaginar. Exatamente a imagem de Lúcifer como um “rebelde positivo” só pode ser possível a partir do século XVIII ajudada pela obra “Paraíso Perdido” (1667/1774), de Milton, que traz uma versão de Lúcifer simpática ao imaginário dessa época.
Também Fausto, tanto na versão popular quanto na peça de Marlowe, tem um fundo prometeico. Tanto que Goethe, depois de ter realizado um dos livros fundadores do Romantismo (Werther) desenvolve sua obra mais gótica no século seguinte, com Fausto.
Aliás, lembrar de Werther como essencialmente Romântico é oportuno para ressaltar outra característica romântica. O personagem Romântico acredita que o mal está no mundo material, em oposição a sua alma pura, que pode ter sua realização no mundo espiritual idealizado (da mesma forma que o passado é idealizado), logo muitas vezes o suicídio aparece como libertação, em que a alma é libertada dos males do corpo e mundo material.
Frankenstein (1819) já uma obra da fase seguinte do Romance Gótico, e talvez seja o exemplo mais conhecido de trajetória prometeica: cientista desafia religião, moral e ciência para recriar a vida, enlouquece e perde a humanidade no processo, que não dá muito certo… e é eternamente perseguido pelo resultado.
- A LINGUAGEM: no Romance Gótico ela se aproxima mais da crueza e realismo Shakespeariano do que da assepsia e idealização do Romantismo. Walpole inclusive cita Shakespeare como referência em sua introdução a Otranto (1764). Mesmo que poetas românticos posteriormente reciclem imagens de romances góticos de uma forma mais aceitável.
Como já foi dito, o “Gótico é uma estética do excesso” e sua linguagem nem sempre tem a limpeza e pureza que encontramos no romantismo. A linguagem do Romance gótico vai descrever o feio e o escatológico quando o encontra.
No século XIX muitos romances misturarão elementos gótico e românticos. Tanto que, como o Romantismo chega no Brasil quando já está terminando na Europa, a versão do romantismo recebida por nós aqui traz o Gótico como característica já misturada ao Romantismo.
- O CORPO: Algo escandaloso para os padrões do século XVIII e começo do XIX, nos romances góticos a sensualidade física é expressa, e os personagens têm um corpo e uma sexualidade que se busca realizar, não necessariamente baseada no amor. Temos casos em que a relação sexual se realiza, ou mesmo tentativas ou realização de estupro. Não há uma idealização da mulher.
No caso dos romances Românticos, temos muitas vezes uma idealização da mulher, e uma descorporificação dos personagens. Os personagens em geral buscam um amor idealizado, baseado no amor platônico ou religioso, sendo que em muitos casos essa ambição só “se realiza” idealmente na união das almas após a morte. No Romantismo original vemos personagens que praticamente não apresentam corpos, amor platônico e realização do amor apenas “entre as almas”, muitas vezes realizado com a morte. (Ex: “Werther” ou “Amor De Perdição”).
O sucesso da primeira leva de romances góticos é contemporâneo de outra polêmica, aquela lançada pelas obras do Marquês de Sade (1740-1814). A obra de Sade não é gótica em si, mas romances góticos da mesma época como Otranto (1764), Vathek (1786) e o Monge (1796), entre outros, compartilham elementos como incesto, assédio sexual, luxúria e confinamento, que se aproximam mais das perversões sádicas do que do idealismo e incorporeidade românticos.
Tanto autores góticos quanto Sade sofreram críticas pelos seus atentados contra a moral e o bom gosto. Sade, como se sabe, passou por isso muito tempo enclausurado.
Se tomarmos a obra de Goethe que marcou o início do romantismo, “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774), notamos significativa diferença em relação aos romances góticos. Goethe só no século seguinte nos presentearia com uma releitura mais gótica de uma peça clássica de Marlove (1563-1593) sobre uma lenda popular, com a parte inicial de “Fausto” (1808).
- O MAL INTERIOR: na narrativa gótica o mal interior se apresenta como degeneração física e moral da alma e do corpo, sendo muitas vezes representado por imagens tomadas das doenças nervosas como descritas na medicina da época. Um dos casos mais conhecidos disso se apresenta em “A Queda da Casa de Usher”, de Poe, que seguiu o modelo gótico que vinha do século XVIII. A questão da ameaça ou processo de enlouquecimento nos Romances Góticos é outro imaginário recorrente que influencia aspectos tanto de personagens quanto cenários.
A imagem da natureza também pode divergir muito no Goticismo e no Romantismo. No Romantismo a natureza tende a representar algo bom, um espelho da alma imaculada do herói. Já no romance gótico a alma do herói é conturbada e ambígua, e seu conflito, interior. Então a natureza e a noite vão aparecer como os lugares do mistério e guardando ameaças potenciais.
-ANTICLERICALISMO: seja contra religiões orientais, como em Vathek, ou religiões e crenças ocidentais, a narrativa gótica estará de alguma forma desafiando a religiosidade e morais estabelecidas, mesmo que essa “religião” seja a Ciência. Manfred (Otranto) persegue a noiva do filho morto, Vathek desafia todos os deuses, O Monge desafia tanto Deus com sua soberba como com seus pecados, Frankestein desafia inúmeros valores morais ao tentar criar vida a partir da morte.
Este aspecto se une a questão Prometeica, e Melmoth vagueia séculos com sua maldição. O personagem vampiro é mais um caso de maldição Prometeica ou Luciferiana. De uma forma ou outra, por desafiarem algum sagrado, todos são punidos eternamente ou por um tempo que parece eterno.
Na percepção da insuficiência da razão e da religião, os autores góticos não oferecem uma solução, apenas apresentam os elementos contraditórios e paradoxais.
Assim a moral dúbia e ambígua dos personagens e do texto gótico tem essa base. Ao contrário, os autores românticos buscam através da imaginação e beleza criar uma forma de reconciliação que a razão e a religião não podem oferecer. Para o romântico, o belo e o sublime vão desempenhar essa função.
O caráter prometeico (ou luciferiano ou fáustico) do Romance Gótico não ajudou na sua popularidade entre as autoridades e críticos também devido a outra característica recorrente: o desafio a religião ou moral, seja ela qual for. Com muitos personagens locados na Europa Latina e Católica Medieval, as críticas ao Catolicismo são evidentes, mas este aspecto atinge outras religiões cristãs ou mesmo o Islamismo e crenças exóticas, como vemos em Vathek, que consegue desafiar diversas crenças na mesma obra. Pelo contrário, em romances Românticos, vemos muitas vezes um reforço das crenças religiosas, com uma solução por vezes espiritual.
-O SUBLIME: No Terror Gótico se busca pelo sublime no terror da antecipação, e não no susto ou violência. A vertente do Horror Gótico, por sua vez, expõe o protagonista a situações extremas morais e físicas que ameaçam sua sanidade.
Uma teoria do sublime de influenciou a narrativa e os efeitos buscados pelos primeiros autores góticos, entre 1760 e 1800 e posteriormente. Burke publicou em 1754 “Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo”, que se tornou um clássico já em sua época.
A teoria é complexa e sua consequência é que os autores góticos procuravam despertar o efeito de sublime nos seus leitores explorando recursos de suspense, terror, vastidão, obscuridade. Era buscado um efeito de “expansão do espírito”, como quando entramos em uma grande caverna ou catedral. Algo bem diferente do que vemos em filmes “de susto” modernos. De fato, boa parte dos romances góticos, apesar de insinuar ou relatar grandes horrores, mostra pouco.
NÃO APENAS UM CENÁRIO
Assim, é importante notar que a estética gótica não se resume a um sistema de cenários (castelos em ruínas, cemitérios, noites enfumaçadas etc) e alguns personagens padrão (zumbis, múmias e vampiros, entre outros). Isso tudo faz parte da tradição gótica, mas estes elementos de cenário e personagens podem e são muitas vezes usados em obras que não são góticas.
Estes cenários fazem sentido em uma obra gótica, porque são uma expressão na forma da estética do conteúdo mais estrutural.
Muitos livros, filmes, estilos de roupa, séries, quadrinhos e jogos foram desenvolvidos a partir da estética gótica e isso é algo que faz parte da cultura universal e domínio público de qualquer pessoa, gótica ou não. O que nos interessa aqui é ver o que a subcultura gótica fez com esses elementos da cultura universal, pois sem entendermos esses elementos da cultura universal não temos como entender o que foi feito deles na subcultura gótica.