MITO 4: “QUEM USA VISUAL NÃO SABE NADA DE MÚSICA”
(& Misoginia e Preconceito na Hierarquização das Artes)
Esse mito diz que quem usa visual faz isso para disfarçar sua ignorância musical ou cultural, ou que se alguém tivesse cultura musical ou geral não precisaria usar visual. Esse raciocínio é semelhante ao preconceito que dizia “mulher bonita é burra, ou, se fosse inteligente não precisaria se embonecar”. Ambas as ideias são absurdas.
A subcultura gótica é rica exatamente pela sua diversidade de estilos visuais e também de estilos musicais. O visual significa tanto quanto as outras artes.
Mas ainda mais grave do que puro preconceito misógino ou homofóbico enrustido (ver mito 5), esse preconceito traz embutido um desconhecimento de que em cenas modernas e desenvolvidas todos os ramos andam juntos no desenvolvimento de um micro-comércio alternativo que envolve a profissionalização e constituição de lojas e empresas voltadas a todos os aspectos subculturais e artísticos.
Ninguém é obrigado a usar visual gótico, mas se alguém pretende freqüentar a subcultura gótica precisa entender que historicamente existe uma variedade de estilos que deve ser respeitada e que definem o estilo.
Não seria estranho alguém frequentar a cena Hip-Hop ou Punk e questionar os estilos de visuais usados?
O preconceito contra os visuais góticos dentro da cena Gótica muitas vezes vêm não de uma crítica construtiva para o desenvolvimento “de um Gótico melhor”, mas sim, pelo contrário, de segmentos considerados alternativos que usam essa desculpa para disfarçar seu preconceito contra Góticos (ou com outros preconceitos da sociedade conservadora embutidos).
Pois, como já comentamos em outros textos, infelizmente existe dentro do que é considerado “underground” ou “alternativo” um grande contingente de pessoas que são na verdade apenas baladeiros genéricos, que carregam consigo todos os preconceitos da sociedade oficial.
:Misoginia e Preconceito na Hierarquização das Artes & Consumo
Ao mesmo tempo, essa ideia tem relação com uma hierarquização das artes e com a divisão do trabalho tradicional entre os gêneros na sociedade conservadora. No passado, as artes e profissões que geravam mais poder social eram destinadas aos homens, e em muitos casos proibidas para as mulheres. No passado “mulheres que conseguiam o privilégio de freqüentar as escolas de arte eram poucas e de uma classe social elevada” ( Carmen Regina Bauer Diniz) .
Assim as artes e profissões “empoderantes”, “sérias” e “intelectuais” eram reservadas aos homens. Artes como dança, costura, moda, artesanato, são consideradas artes menores por terem sido historicamente reservadas às mulheres e homens sem poder ou estigmatizados. É uma divisão entre as artes destinadas ao intelecto e razão (consideradas masculinas), e as destinadas ao olho e decoração (consideradas femininas). Algo que apenas espelha os respectivos papéis sociais tradicionais de uma sociedade conservadora.
Quando as mulheres ocidentais passam a se alfabetizar em quantidades maiores, na passagem do século XVIII para o XIX, mesmo fora da classe aristocrática, se forma uma hierarquização dentro desta arte: se concebe que certas leituras são inferiores e “de mulher”, em oposição a outras leituras que seriam adequadas e boas formadoras, além de adequadas a racionalidade “masculina”. Notoriamente, os romances góticos e românticos, no seu início, são considerados prejudiciais moralmente e até para a saúde mental e física (assim como a leitura “em excesso”).
Ainda hoje, mesmo se tomamos uma arte como o cinema, vemos poucas mulheres nas posições de poder e controle das produções cinematográficas: nas posições acima de diretor e roteirista. Em outras áreas, ainda vemos uma divisão entre “artes de mulher” e “artes de homem”.
Como nos lembra Robert Kurz, ainda no século XX, o próprio artista é colocado em um papel social semelhante ao que a sociedade tradicional reservava a mulher: o papel do belo, do decorativo. Mas alguns homens em atividades específicas só puderam ser depreciados e “feminilizados” pejorativamente exatamente porque várias dessas categorias artísticas (do belo) já tinham anteriormente sido depreciadas de forma misógina por serem “concedidas” às mulheres. Na sociedade tradicional, o belo e sensível era reservado ao feminino, enquanto ao masculino se reserva o racional, intelectual e até as artes “superiores e sérias”.
Assim, ainda hoje, movimentos enrustidos de machistas, misóginos e homofóbicos muitas vezes se comprazem em criticar a futilidade da moda, da maquiagem, dança, artes plásticas, poesia, etc, pregando uma “intelectualidade” na oposição forma (que seria sem valor) e conteúdo (que teria valor). Esquecem que nas artes o conteúdo é expresso na forma, sem falar nas sutilezas já bem explicadas pela semiótica e linguística (como o “conteúdo da forma”, etc. de Hjelmslev e o “meio- mensagem” de McLuhan, etc.).
Toda arte é feita de forma, sem a qual seu conteúdo não resiste. Todos os fazeres estéticos e simbólicos exigem igualmente maestria técnica, trabalho e informação estética, e todos constroem discursos sobre o mundo, representando-o, seja com música, arquitetura, dança, moda, poesia, teatro, cinema, etc.. A valoração diferente de uma ou outra está relacionada apenas a construções históricas relacionadas a divisão do trabalho e poder entre os gêneros ou classes sociais.
A questão do consumo e consumismo também é valorada de acordo com essa hierarquização das artes e fazeres. Assim, o consumo de livros e música vai ser considerado mais intelectual e artístico que o consumo de dança e vestuário, por exemplo.
Mas a questão do consumismo é uma questão DIFERENTE da questão da hierarquização das artes: mesmo as artes consideradas superiores e masculinas podem ser apenas objeto de consumismo, ou serem elementos significativos em um sistema subcultural ou cultural.
Assim, livros, Cds, roupas, filmes, objetos, alimentos, etc podem ser igualmente: a) consumidos como um elemento isolado, como apenas um produdo isolado de qualquer outro significado, dentro da lógica de consumo e descarte que precisa estar em um ciclo periódico (um moda é substituída por outra sem relação com a anterior a cada seis meses ou um ano).
ou
b) consumidos como um elemento que estabelece uma relação homológica e de significado com outros elementos, constituindo um discurso. Não há uma pressão de tempo e descarte por uma nova moda ou lançamento, e as novidades terão uma coerência estética e discursiva com as anteriores, mesmo que insiram novos elementos. Não há o descarte programado.
Podem existir pessoas acumuladoras em ambos os modelos, é importante não confundir acumulação com consumismo, são processos que podem estar relacionados as vezes, mas são diferentes. Uma pessoa pode acumular uma grande coleção de botas góticas ou CDs góticos ao longo da vida, mas seletivamente, porque gosta dessas duas coisas e as relaciona a uma experiência cultural maior e integrada, com significado. Nesse caso é um acumulador não consumista, algo como um colecionador.
Para uma leitura mais aprofundada dessas diferenças veja também as páginas 114 a 123 do livro “A Happy House in a Black Planet, VOL. 2” (2018, o de capa vermelha), disponível para download aqui. VOLTAR PARA O TEXTO "10 MITOS QUE PREJUDICAM A CENA GÓTICA BRASILEIRA"